sábado, 10 de maio de 2008

Pop japonês
Geraldo Galvão Ferraz
 
Histórias fantásticas e de amor, num romance empolgante que vai dos Beatles a Kafka.
Como um de seus personagens, Haruki Murakami estava num campo de beisebol em abril de 1978 e teve uma espécie de epifania. Saiu do estádio com a idéia de que deveria escrever. Tinha 29 anos e nenhuma experiência como escritor. Hoje é um dos mais importantes autores japoneses, traduzido em 34 idiomas, com livros cujas tiragens alcançam milhões de exemplares. Depois de obras como Norwegian Wood e Minha querida Sputnik, é publicado no Brasil o seu livro mais ambicioso: Kafka à beira-mar. Um romance extenso, de 572 páginas (o que irá conspirar contra seu sucesso no Japão, onde são privilegiados os livros finos, que podem ser lidos no trem), mas empolgante. Não foi à toa que John Updike escreveu na revista New Yorker: "É um livro que não se pode parar de ler". Ponto para o autor, que tem no talento de ótimo contador de histórias um dos seus melhores recursos.
Não é um livro que marque mudanças significativas na obra de Murakami. Até agora ele escreveu histórias de amor e fábulas fantásticas, por assim dizer. Aqui, ele juntou as duas coisas. Conta a história de dois personagens principais, um deles o garoto Kafka Tamura, de 15 anos, que foge da casa onde mora com o sinistro pai há mais de dez anos, pois a mãe, certo dia, saiu com a irmã de Kafka e nunca mais voltou. Kafka, que não se chama Kafka, mas se autobatizou com o nome do escritor tcheco, ouviu do pai a profecia: "Um dia você irá matar seu pai e dormir com sua mãe e sua irmã". Ele resolve fugir da casa e da profecia, numa ação que lembra a tragédia grega, sobretudo o mito de Édipo.
O outro personagem é um homem de 60 anos, Satoru Nakata, considerado louco, mas que tem poderes como falar com os gatos e fazer chover coisas esquisitas do céu, como peixes e sanguessugas. Nakata, analfabeto e deficiente após um trauma infantil, avança pelo Japão, numa peregrinação fantasiosa em busca de algo, que não sabe o que é, mas descobre aos poucos na sua jornada. A história de Nakata é contada alternadamente com a de Kafka, até que no desfecho as duas se convergem.
Tanto o rapaz quanto o idoso têm em comum, além da necessidade da busca, uma característica importante. Ambos estão à margem da sociedade: o garoto pegou dinheiro na casa paterna e tem em seu encalço a instituição escolar. Nakata, além de ter economias de quando conseguia dinheiro descobrindo gatos fugitivos da vizinhança, é um drop-out especializado na sobrevivência com recursos mínimos, para quem é uma festa a ser lembrada uma refeição de enguia com arroz.
As jornadas de ambos os levam a uma biblioteca particular no interior, uma espécie de refúgio da tradição pouco visitado, onde o passado é mantido nos móveis seculares e nos livros raros. Kafka chega primeiro e é acolhido por Oshima, personagem ambíguo e culto, que depois se descobre ser uma mulher disfarçada. Mas a história de amor de Kafka é mais complicada. Ele se apaixona por uma garota de 15 anos, que só conhece como uma aparição fantasmagórica; essa garota é, no presente "real", a diretora da biblioteca. Não há dúvida de que ela é a mãe de Kafka e a profecia de seu pai termina por se cumprir.
Nakata, por seu lado, numa cena fantástica, acaba por apunhalar um homem que se apresenta (e se veste) como o Johnnie Walker da marca de uísque. Tenta confessar na polícia, mas é considerado louco e mandado embora. De acidente em acidente na sua viagem, consegue a ajuda de um caminhoneiro - que, por sua vez, se encontra com outro personagem exótico, apresentado (e vestido) como o coronel Sanders, o símbolo da rede de fast food KFC. O coronel o ajuda na sua busca por uma pedra que marca a entrada de um portal para um universo paralelo que é essencial na história.

Crise de identidade


Embora esta rápida sinopse pareça uma das histórias de Nakata, ela mostra bem como Haruki Murakami vai armando sua história da forma encantatória que lhe é peculiar - contando com recursos do policial, da ficção científica, do fantástico. Claro que ajuda o autor ser um fã confesso de autores como Raymond Chandler, Stephen King, Dostoievski e Jung. No livro, um leitor atento também descobrirá ecos de Scott Fitzgerald ou de Raymond Carver, cujos livros Murakami traduziu para o japonês.
Esse leque de influências, e o fato delas serem esmagadoramente estrangeiras, faz críticos e autores do establishment literário nipônico torcerem o nariz para Murakami. Primeiro, sua obra é visceralmente diferente daquela de grandes escritores do país como Yasunari Kawabata, Junichiro Tanizaki e até mesmo de Yukio Mishima, cujo apuro formal é flagrante (além de encerrar uma visão passadista do Japão). Murakami, como outros escritores, Banana Yoshimoto e Ryu Murakami, entre eles, tenta mostrar um Japão mais atual, em que a bolha econômica do pós-guerra levou primeiro a uma excessiva valorização consumista de corte americano e depois a um esnobismo que procura resgatar superficialmente tradições do passado.
Murakami, por exemplo, dá o título de uma canção dos Beatles, "Norwegian Wood", a um dos seus livros, fala de Jack Kerouac em outro, cita Prince, os Rolling Stones, Eichmann, Casablanca, Simon and Garfunkel, Radiohead e John Coltrane. O autor é louco por música, teve um bar de jazz, e nas paredes de sua casa em Osio, subúrbio que fica a pouco mais de uma hora de Tóquio, alinha-se uma coleção de mais de sete mil discos de vinil. Também tem mania do seriado Lost, a ponto de comprar uma casa no Havaí usada por um personagem. Mas essa proliferação de referências estrangeiras é considerada de mau gosto pela crítica convencional.
Assim, Murakami fica numa espécie de limbo, no Japão. É visto como um escritor popular, sem fôlego para alcançar os grandes. Mas o público o adora, sobretudo os leitores de menos de 30 anos. Norwegian Wood já foi considerado uma espécie de O apanhador no campo de centeio, de J.D.Salinger. É uma leitura praticamente obrigatória para o jovem japonês. Os críticos mais receptivos colocam-no ao lado de Paul Auster ou Martin Amis (mas é interessante a comparação que o escritor americano Jay McInerney fez de Murakami com o argentino Manuel Puig, outro autor formado por Madison Avenue, Broadway e Hollywood).
O próprio escritor japonês se vê como uma espécie de intermediário, que faz uma nova espécie de literatura. Diz que seus livros oferecem personagens em busca de um tipo de liberdade que só recentemente alguns japoneses resolveram procurar (no livro, os personagens de Kafka e Nakata são exemplos). E ele gosta de lembrar, em suas entrevistas, que a identidade buscada por esses "rebeldes" não tem tradução em japonês. A palavra correspondente a "identidade" não existe.
Os personagens e a trama de Kafka à beira-mar são japoneses, e ambientados num quadro japonês. Mas não necessariamente. Murakami, que viveu vários anos nos Estados Unidos, reconhece que não é um escritor regional, mas que, agora, está "em busca de algo mais japonês". Busca que não será fácil para ele, assim como as jornadas de seus personagens.

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